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Arquiteta brasileira criou aplicativo contra assédio de rua

Postado em Ciência, Tecnologia e Inovação

Reportagem: Revista Marie Claire

Quantas vezes você já não foi assediada nas ruas? Lembro-me de algumas vezes que foram marcantes, principalmente aquelas que, quando menor de idade, eu voltava do colégio para casa e via homens parando o carro como se dissessem: ENTRA! Eles ficavam me esperando passar, eu mudava de calçada, eu corria, eu pensava em formas de fugir, comecei a andar no sentido oposto ao do trânsito de carros da rua, a voltar por ruas movimentadas e sempre que possível com alguém. A cultura do medo nós faz desde jovens a fugir da possibilidade de ser estuprada.
Por isso, projetos como o Vamos Juntas?” teve tanta repercussão, se tornando inclusive livro, e que a campanha “Chega de Fiu Fiu” ganhou visibilidade  internacional. A questão é que agora surgiu mais uma alternativa que tenta criar medidas paliativas para esse mal social da cultura machista. O aplicativo Malalai nada mais é que a chance de traçar seus caminhos de forma mais segura. Criado pela arquiteta mineira Priscila Gama, o aplicativo pode ser uma alternativa para evitarmos que o pior aconteça, dado que nós, mulheres, nos sentimos inseguras nos espaços públicos. Para saber mais sobre o Malalai, entrevistei Gama, que me explicou tudo. No Android desde o ano passado, estará disponível para IOS este mês.
 

Priscila Gama, criadora do Malala (Foto: Mônica Imbuzeiro / Agência O Globo)

 
Como o Malalai funciona e de onde vem esse nome?
O aplicativo foi pensado para oferecer maior segurança para mulheres que se deslocam  sozinhas, seja qual for o meio de transporte. A atuação ocorre em três frentes: prevenção, conforto cognitivo e emergência.
Para prevenção, um mapeamento colaborativo permite dar e consultar informações sobre as ruas por dia e por hora. Atualmente, os pontos são ruas mal iluminadas, ruas movimentadas, pontos comerciais abertos, presença de porteiros, postos policiais e assédio recorrente.
O conforto cognitivo está relacionado à sensação de segurança. É o que faz com tenhamos o hábito de informar para uma pessoa de confiança quando saímos de um local para ir pra casa, por exemplo. Nessa frente, é possível compartilhar a sua rota com alguém e essa pessoa, além de ver o seu deslocamento no mapa, recebe notificações automáticas da sua localização. É possível escolher um ponto intermediário para envio de notificação e configurar o aplicativo para que esta pessoa seja avisada quando você estiver a X metros do destino. O app avisa quando você chega ao destino e futuramente, também avisará quando você sair da rota e quando não chegar no tempo previsto. Na frente de emergência, um botão de pânico, quando acionado, envia um SMS e link com localização para até três contatos pré-cadastrados. Temos um acessório vestível (wearable). É um anel que funciona como um botão de pânico. Ele foi entregue como recompensa na campanha de crowdfunding. O objetivo é que a cada 10 vendidos, um seja doado para mulheres em situação de alta vulnerabilidade do ponto de vista da exposição a violência e faixa de renda. Quando esse botão em forma de anel é apertado, ele informa sua localização e uma mensagem de ajuda para um contato de emergência.
nome significa “afetada pela dor”. É a origem do nome da Malala Yousafzai, paquistanesa Nobel da paz. O nome de Malala vem da história de Malalai de Maiwand, que foi para o campo de batalha cuidar de seu pai e noivo quando o Paquistão enfrentou a Inglaterra. Ao ver a situação dos soldados, enfrentou o exército inglês de peito aberto empunhando uma bandeira branca. Foi fuzilada, mas inspirou o exército paquistanês a vencer a guerra. Quando a ativista Malala Yousarfzai nasceu, a notícia não foi bem recebida, como não é bem recebida a notícia de que nasceu uma menina. Seu pai ligou para familiares solicitando que a  visitassem e levassem presente. Quando respondiam que esse não era o costume quando não era um menino, ele insistia e dizia que sua filha seria diferente – tanto que seu nome faz referência a Malalai Maiward.
Qual era sua principal intenção: segurança ou vigilância? E de onde vem sua inspiração para o aplicativo?
A segurança. Inclusive tínhamos essa preocupação de vigilância desde o início. Por isso a iniciativa de compartilhar a localização e a rota com alguém é sempre da usuária. A ideia surgiu depois que li relatos de violência sexual contra mulheres em deslocamento na hashtag #primeiroassédio, promovida pela ONG Think Olga com o objetivo de incentivar mulheres a relatarem em redes sociais.
Vigiar alguém pela tela do celular pode ser usado como uma forma de controle, tipo stalker?
Stalker é uma manifestação de abuso presente em relacionamentos abusivos. Colocamos isso na balança e concluímos que se a pessoa usar o Malalai para isso, usaria qualquer outro aplicativo de identificação de localização, inclusive alguns que, ao contrário do Malalai, não depende só da vontade da usuária informar onde está. Relacionamentos abusivos e violência doméstica envolvem questões que ultrapassam os limites de soluções de base tecnológica.
Como o fato de você ser arquiteta influenciou nesse processo?
Arquitetos têm uma formação muito ampla. Sempre digo que é um curso que envolve psicologia e antropologia, além da arquitetura. Você mergulha no outro para traduzir o que ele não diz, principalmente quando projeta casas, que foi o que fiz na maior parte do tempo. Mas, para além disso, a visão sobre o espaço urbano – em especial na parte do mapeamento colaborativo. Muito se fala sobre a necessidade de um desenho universal. Se as cidades fossem planejadas para o pior cenário, atenderiam a todos. Pensando em cadeirantes, teríamos rampas onde as pessoas com carrinhos de bebês e idosos, por exemplo, se deslocariam com facilidade. Ampliando para a escala da cidade, se estas são seguras para mulheres, são seguras para quase todos. Em urbanismo, “olhos da rua” são fundamentais para tornar as ruas seguras. Daí as tentativas de habitar os centros das cidades, que quando se restringem ao uso comercial, tornam-se inóspitos a noite. Os quarteirões, da maneira como são em sua maioria projetados hoje, reduzem a amplitude da visibilidade. Se fossem pilotis, um transeunte poderia identificar que um crime está ocorrendo na rua ao lado. Além disso, existe um estudo que relaciona a baixa luminosidade ao aumento da taxa de criminalidade. A explicação também pode estar relacionada ao fato de “ninguém está vendo”. O que fazemos é levar estas informações para dentro do aplicativo, para que futuramente possam ser cruzadas com outros dados e utilizadas de forma estratégica para traçar políticas públicas, por exemplo.

Você acha que assédio se dá de forma diferente para mulheres negras? Acha que elas têm uma outra vivência urbana?
Há duas questões centrais na discussão de gênero x cor x cidade. A hiperssexualização da mulher negra e a violência inerente aos locais onde prioritariamente reside a população de baixa renda – ou seja, no Brasil, negra. Então sim, a vivência é outra. Elas estão ainda mais expostas, com o agravante do tempo de deslocamento e da qualidade desse deslocamento: a pé ou de transporte público lotado em horários de pico nas grandes cidades. Ou até mesmo depois que a cidade se esvaziou, dado o tempo de deslocamento. Apesar de ter residido em bons bairros no interior de Minas, não por termos uma condição financeira estável, mas porque meu pai não queria que dependêssemos de transporte público, desde muita nova percebia que meu corpo era observado de maneira agressiva. Só quem já recebeu um olhar agressivo o identifica e sabe que não é admiração e elogio. Para uma pré-adolescente é motivo de medo.
Você acredita que é possível projetar cidades seguras para mulheres? E como isso seria?
Obviamente há muitas outras variáveis envolvidas na violência contra a mulher – no Brasil, o machismo envolve toda uma reestruturação. Mas o redesenho urbano seria uma peça relevante sim. A lógica modernista que separa e distancia e o local de trabalho do local de morar, por exemplo, precisa ser revista não só pelos transtornos relativos ao trânsito, mas com o olhar voltado para a segurança e tendo em mente o desenho universal, ou seja, considerando o pior cenário. A “teoria da janela quebrada” se aplica em regiões de baixa renda, o que significa que pequenas intervenções, ainda que só estéticas, fazem diferença, o que dirá então de iluminação pública. Além disso tem também fatos que dizem que cidades caminháveis são mais seguras. Infelizmente no Brasil, o deslocamento em veículos automotores ainda é prioridade. E aí caímos na discussão de representatividade: se o tomador de decisão sofresse com o problema, teríamos outro quadro. Quando não se tem mulheres e negras em posição de poder, principalmente no poder público, muito pouco ou quase nada é feito por elas na prática e a discussão limita-se à discussão em si.
 
Reportagem da Revista Marie Claire. *Essa é a primeira de uma série de bate-papos com mulheres negras que empreendem no Brasil nas mais diversas áreas e que estão trazendo não só novas ideias, mas também um trabalho de qualidade que precisa ser conhecido, valorizado e visibilizado. Esse será o foco da série de entrevistas #NegrasEmpreendedoras.

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