Mudar modelos de negócio leva tempo e, por vezes, algum custo adicional para quem produz e para quem compra. Mas, e se em um cenário de dificuldades financeiras trazidas por 2020 e com eco em 2021, fosse possível abraçar uma alternativa mais sustentável e com lucratividade? Esse é um dos ganhos possíveis com a adoção de um modelo de economia circular, aliando melhorias ao ecossistema de extração e uso de matérias primas até o reaproveitamento de resíduos como um produto rentável. União Europeia, China, Estados Unidos e Canadá estão encabeçando discussões nesse caminho. E o Brasil já tem iniciativas que podem ajudar o país a fazer parte de um mercado que, apenas na Europa, pode gerar mais de U$ 1.8 trilhão em ganhos de valor até o ano de 2030 –alguns desses projetos apoiados pela Fundep (Fundação de Desenvolvimento da Pesquisa) em Minas Gerais.
De acordo com o professor do Departamento de Engenharia de Produção da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Eduardo Romeiro Filho, especialista em economia circular, os princípios básicos desse modelo são: 1 – eliminar resíduos e poluição desde o princípio; 2 – manter produtos e materiais em uso e 3 – regenerar sistemas naturais. Além disso, é necessário pensar de uma maneira sistêmica as diferentes relações entre o sistema de produção e de consumo. As bases para a expansão do conceito no Brasil demandam “um sistema eficiente de logística reversa, que permita a reciclagem e remanufatura, mas que é de complexa implantação em países como o Brasil, de grande extensão e diferentes níveis de desenvolvimento e renda entre as regiões”, pondera o professor.
Para superar esse entrave, Eduardo Romeiro avalia que a criação de pequenas “células de produção e consumo circulares em algumas regiões” são um bom caminho. Com uma escala menor, torna-se mais viável enxergar possibilidades e modificar processos produtivos, incluindo resíduos como recurso de produção que retorna à cadeia produtiva, gera empregos e permite uma exploração menos danosa ao meio ambiente. “Uma indústria de calçados que reduz o desperdício de couro não está somente reduzindo o impacto ambiental, mas também seus custos de matéria-prima. Para isso, podem ser feitas alterações nos processos de produção com melhoria nos padrões de corte ou no design, com a criação de calçados que utilizem menos couro ou o empreguem de forma mais eficiente”, exemplifica, citando ainda setores como os de fabricação de móveis, produção agrícola e têxtil como potenciais beneficiários de um modelo de economia circular.
Iniciado em 2020, o REDE Candonga é uma das iniciativas que atua baseada em conceitos de economia circular. O projeto foi estruturado em torno de um problema de geração de resíduos da Usina Hidrelétrica Risoleta Neves, situada no Rio Doce, nos municípios de Santa Cruz do Escalvado e Rio Doce, em Minas Gerais. No local, havia entre 10 a 20 milhões de toneladas de rejeitos com material arenoso composto por quartzo, argila e matéria orgânica. A partir daí, pesquisadores de departamentos de química, engenharia e outras áreas iniciaram trabalhos para encontrar viabilidade para o rejeito produzido pela mineração e para seu reaproveitamento, inicialmente, para a construção civil. Depois, foram sendo expandidos para produzir produtos como geopolímeros e adsorventes que têm maior valor agregado no mercado. Essa rede de conhecimento e de experiências com materiais considerados inúteis pela mineração formou o INCT Midas, com o objetivo de conectar o setor privado com oportunidades geradas nas universidades tendo no seu DNA o conceito de economia circular. “Nós trabalhamos com o uso desse rejeito para gerar atividade econômica para a região, gerar renda. É um passivo ambiental que está ali e pode ser aproveitado”, explica o professor e coordenador do INCT Midas, Rochel Montero Lago. São tijolos, telhas e outros produtos que podem ser comercializados a partir das técnicas empregadas no local.
Mas não são apenas produtos prontos que fazem parte da pesquisa e que servem de sustentação para o modelo de economia circular. Rochel Monteiro explica que o engajamento do poder público e de moradores da região para produzir outros produtos criados a partir dos rejeitos é fundamental. Atualmente, no portfólio de projetos do INCT foi criado um Centro de Referência em Sustentabilidade na cidade do Rio Doce. A ideia do projeto é capacitar a população local para a produção de objetos à base de rejeito e assim possibilitar a comercialização e uso desses objetos.
Uma primeira frente é a pavimentação do Caminho de São José, caminho que passa por um circuito de grutas, cascatas e ilhas de 47 quilômetros, ligando as cidades de Barra Longa e Rio Doce. Nele, serão utilizados polímeros fabricados com material de rejeito. Outra iniciativa é a fabricação de peças de artesanato pelos moradores de comunidades vizinhas à hidrelétrica de Candonga, aproveitando também o rejeito como matéria prima. Um dos fatores de maior dificuldade é o convencimento da população sobre a ausência de riscos de utilização do material reaproveitado. “Existe um estigma pelo fato de o material ser um rejeito. Eu vou fazer um piso a partir de um rejeito da mineração. Será que ele não é tóxico? E mesmo quando é uma aplicação menos nobre, como um piso, as pessoas ainda se perguntam se vão passar a vida toda pisando em algo que é um rejeito.”, explica Rochel Monteiro, salientando que esse modelo é replicável em locais onde há passivo ambiental. “Interessa ao setor privado, ao poder público local e aos moradores. Mas há sempre um desafio de convencimento importante”, diz.
Além de negócios com impacto social imediato, o INCT Midas também trabalha com outros projetos que têm resultados diretos em indústrias robustas como a automotiva. O Grupo de Tecnologias Ambientais (GRUTAM) desenvolveu um método de reaproveitamento de glicerina, gerada na indústria do biodiesel, para ser utilizado como um fluido de corte em fabricas automotivas do Grupo Stellantis. É um produto feito com insumos que não agridem o meio ambiente. Outra tecnologia que se encaixa no perfil de economia circular vem do projeto P4Tree. Ela foi implantada em banheiros químicos da cidade de Belo Horizonte e filtra os dejetos para separar o fósforo presente na urina. Essa substância é usada na adubação de plantas, destinado à fabricação de fertilizante.
Perspectivas para 2021
No Brasil, a aderência à economia circular tem sido puxada, além de iniciativas como a do INCT Midas, também pela indústria. Uma pesquisa da Confederação Nacional da Industria (CNI), de 2019, mostra que 76,4% das indústrias do país adotam algum tipo de processo ligado à economia circular para aumentar a vida útil de produtos e materiais. Reuso de água, reciclagem de materiais e logística reversa são as principais situações encontradas no leque de ações da indústria brasileira. Entre os motivos que levam empresas a adotar boas práticas segundo a pesquisa da CNI, primeiramente, vem a redução de custos; seguido pela eficiência operacional e, depois, a oportunidade de novos negócios.
Na avaliação do professor Eduardo Romeiro Filho, o caminho para a expansão da economia circular no país passa por um olhar especial para pequenos negócios. “Observamos inúmeras oportunidades para sistemas de produção mais adequados ao conceito de economia circular, mesmo em sistemas de produção baseados em tecnologias tradicionais – como a produção de queijo minas artesanal. São pequenas experiências que vão gradativamente gerando conhecimento e desenvolvimento voltados para um sistema mais sustentável, circular. Não conheço casos em grandes empresas, já que são sistemas mais complexos e requerem uma abordagem mais sofisticada, que muitas vezes demandam soluções tecnologicamente mais robustase de alto custo. Por isso creio que a principal contribuição para inovação voltada à EC virá de pequenas experiências.”, afirma.
Entre as estratégias para que a economia circular ganhe mais espaço nos processos produtivos está a mudança na legislação. O professor Rochel Monteiro ressalta que “o grande desafio é que isso seja viável economicamente”, no entanto, ele exalta a necessidade de ação de poderes públicos para que isso aconteça, seja com leis prevendo uso de rejeitos ou garantindo benefícios fiscais a empresas. “A participação de governos para o crescimento da economia circular costuma ser essencial, vide o exemplo da China. O poder público é importante pela regulamentação”, ressalta.
Enquanto o país ainda busca estruturar planos que integrem os poderes público, privado e sociedade civil, a União Europeia avança no aprimoramento de sua legislação para tornar a economia circular uma prática corriqueira para novas empresas e outras já consolidadas. Desde março de 2020, a UE vem criando marcos de referência para a indústria. Neste ano, a previsão é de que propostas legislativas para setores têxtil, de plástico, comida e embalagens, e lixo já recebam um conjunto de propostas que sejam capazes de nortear mudanças nos setores produtivos até o ano de 2030. Um dos arcabouços legais já prontos e que interessa ao Brasil, dado seu peso na indústria automotiva e de eletroeletrônicos, é de produção, descarte e reaproveitamento de baterias. A meta é diminuir, até 2050, o consumo de matérias primas em mais de 53% enquanto a diminuição das emissões de dióxido de carbono pode chegar a 83% no mesmo período. Uma tentativa de melhoria, ao mesmo tempo, da economia, do planeta e da lucratividade das empresas.
A China, que foi o primeiro país a ter um plano estruturado de economia circular, em 2009, colhe os frutos da estratégia. O país asiático já consegue recuperar cerca de 20% do total de rejeitos de mineração produzidos por lá e realocá-lo competitivamente no mercado. Se há exemplos que parecem despontar para o Brasil, eles vêm dos chineses e da União Europeia.