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Um guia global para a doença de Chagas

Postado em Ciência, Tecnologia e Inovação
Reprodução/ Fiocruz Minas

Endêmica da América Latina, a tripanossomíase americana ou doença de Chagas, causada pelo protozoário Trypanosoma cruzi, ultrapassou fronteiras e ameaça países da Europa, Japão, Austrália, Canadá e Estados Unidos, onde o desconhecimento sobre diagnóstico, manejo clínico e tratamento aumenta os riscos de transmissão e a vulnerabilidade dos pacientes. Insuficiência cardíaca, acidente vascular cerebral, arritmia e morte súbita podem afetar 30% das pessoas infectadas. Preocupadas em orientar profissionais e gestores de saúde do mundo inteiro, a American Heart Association e a Sociedade Interamericana de Cardiologia publicaram, na revista Circulation, novo guideline sobre a doença, elaborado por 12 pesquisadores brasileiros e estrangeiros, três deles da UFMG.
A transmissão vetorial, pelo contato com as fezes e/ou urina do inseto vetor contaminado (triatomíneos de 12 espécies diferentes, conhecidos como “barbeiro”), ainda é a principal forma de contaminação pela doença, embora tenha diminuído em vários países como Brasil, Chile e Uruguai.  Entretanto, no Chaco, região ecológica entre Bolívia, Argentina e Paraguai, a infecção chega a 80% entre adultos e 20% em crianças.

Miocárdio de um paciente com reativação aguda de Chagas após transplante cardíaco. O parasitismo das fibras musculares é observado nas formas amastigotas do ‘Trypanosoma cruzi’, levando à formação de pseudocistos (indicados pela seta preta)
Acervo Guideline

Os riscos de transmissão por formas não vetoriais, como transfusão de sangue, doação de órgãos, transmissão congênita e por via oral, são graves problemas de saúde pública no mundo todo. Dados recentes estimam que ao menos 300 mil pessoas residentes em 40 estados dos Estados Unidos estejam infectadas, sendo que de 5,5% a 7,5% podem ter se contaminado localmente. Na Espanha, residem 42 mil indivíduos infectados. Suíça, França, Itália, Canadá, Austrália e Japão também registram portadores do protozoário.
O documento chama a atenção para o fato de que a maioria deles, incluindo os cerca de 30 mil a 40 mil portadores de cardiomiopatia chagásica, são imigrantes de áreas endêmicas da América Latina, o que realça a importância dos fluxos migratórios para a dispersão mundial da enfermidade. De 2007 a 2017, segundo a Associação Americana de Bancos de Sangue, as triagens de doadores para a doença de Chagas, realizadas em 14 bancos de sangue dos ­Estados Unidos, confirmaram 3.480 doações contaminadas em 46 estados, e os maiores números são registrados nos estados da Califórnia, da Flórida e do Texas.
O artigo escrito pela equipe de pesquisadores, coordenada pela professora Maria do Carmo Pereira Nunes, da Faculdade de Medicina, também cardiologista no Hospital das Clínicas, destaca, principalmente, os aspectos cardiovasculares da infecção e do acometimento do trato gastrointestinal (principalmente esôfago e cólon) pela doença de Chagas. O artigo atualiza informações sobre triagem, exames clínicos e laboratoriais, medicação e dosagem, indicação e cuidados no tratamento e formas de prevenção.
Maria do Carmo explica que doença de Chagas é o nome para a enfermidade geral, e a cardiomiopatia chagásica é uma de suas manifestações mais graves. A cardiomiopatia apresenta características diferentes das demais doenças do coração, por isso requer grande conhecimento para o diagnóstico, especialmente de pacientes nascidos na América Latina. “Cerca de 50% das pessoas infectadas pelo protozoário permanecem na fase indeterminada da doença, sem sintomas ao longo da vida. Mas um terço delas, 20 a 30 anos depois, no auge da vida produtiva, apresentam sintomas graves de insuficiência cardíaca, fenômenos tromboembólicos e ­arritmias ventriculares, com alto risco de morte súbita”, observa. “Um paciente jovem, por exemplo, que sofre um AVC – o que não é habitual – deve ser avaliado sob suspeição para doença de Chagas, pois essa pode ser uma das primeiras manifestações da doença”, exemplifica a médica.
Os autores do guideline afirmam que “a doença continua amplamente negligenciada, com avanços insuficientes em diagnóstico e tratamento, e é responsável por 7,5 vezes mais anos de vida perdidos pela incapacidade do paciente que a malária”. Calcula-se que haja seis milhões de pessoas com a doença de Chagas no mundo. A infecção estimada é mais alta na Bolívia (6,1% da população), seguida pela Argentina (3,6%) e Paraguai (2,1%). O maior  número de indivíduos com a doença, 42% dos casos, residem na Argentina (1,5 milhão de pessoas) e no Brasil (quase 1,2 milhão de pessoas). Quase 1,2 milhão de pessoas nesses países são portadoras de cardiomiopatia chagásica.
Tratamento
O benzonidazol e o nifurtimox são os únicos fármacos com eficácia comprovada contra a infecção por T.cruzi. Mas o benzonidazol é o medicamento que apresenta maior tolerância, o que foi alvo do maior número de pesquisas e o mais disponível, inclusive nos Estados Unidos, onde foi liberado para uso em maio deste ano. “Apesar da indicação não ser generalizada, em razão dos vários efeitos colaterais e de exigir acompanhamento cuidadoso e regular, defendemos sua prescrição, especialmente para pacientes abaixo de 50 anos, que ainda não manifestaram nenhum sintoma da doença”, afirma a cardiologista do HC.
Ela justifica: “Acreditamos que é a chance do paciente evoluir melhor. Não dá para ficar esperando a doença progredir, porque depois será possível apenas tratar a síndrome clínica de insuficiência cardíaca ou promover cuidados paliativos. Em muitos casos, apenas o transplante de coração é a esperança do paciente, mesmo sabendo dos riscos decorrentes do procedimento, como rejeição do órgão e recidiva da infecção no coração transplantado”.
Mas a médica reconhece que não há consenso sobre a eficácia do benzonidazol. “Estudos recentes, apresentados pelo grupo do Benefit (sigla em inglês para Avaliação do Benzonidazol para Interrupção da Tripanossomíase), com pacientes latino-americanos, revelam que o resultado foi o mesmo para pacientes tratados com a medicação ou com placebo.” Segundo Maria do Carmo, a controvérsia se justifica pelo fato de a patogênese da cardiopatia chagásica crônica ser complexa e incompletamente compreendida, mesmo depois de 100 anos de sua descrição pelo cientista brasileiro Carlos Chagas.
Esperança na imunoterapia
Outra autora do guideline, a professora Walderez Ornelas Dutra, do ICB, afirma que “prever qual paciente vai evoluir para as formas mais graves da doença é um dos grandes desafios para as pesquisas em imunopatologia da doença de Chagas”. O laboratório do ICB, sob sua coordenação, já encontrou, em pacientes cardíacos, subpopulações celulares diretamente associadas com a forma mais grave da doença. “Conseguimos bloquear a ativação específica dessa população celular, o que traz a possibilidade de diminuir o perfil inflamatório do paciente cardiopata, sem que seja preciso ativar o sistema imune como um todo”, afirma.
Os testes in vitro já foram realizados, e a próxima etapa da pesquisa é descobrir se esse bloqueio pode, de fato, evitar a cardiopatia. Além disso, os pesquisadores pretendem descobrir se esse grupo celular está presente em outras cardiopatias ou se é  exclusivo da doença de Chagas, ou, ainda, se é distinto nos chagásicos de ­nacionalidades diferentes. As discrepâncias entre tempo e frequência da infecção, e até entre o índice de morbidade em relação às vias de infecção pelo T.cruzi, já são conhecidas, segundo Walderez. “Sabemos que os infectados por via oral, com ingestão de sucos de cana ou açaí in natura, são mais sintomáticos na fase aguda e que o índice de morbidade pode variar entre pacientes de nacionalidades diferentes. Assim, é importante estudar essas células que podem ser um alvo imunoterapêutico em diferentes situações”, exemplifica.
“Os dois mecanismos primários – a resposta imune causada pelo parasita e a autorreatividade desencadeada pela infecção – provavelmente iniciam e direcionam miocardite aguda e crônica, com mecanismos secundários, distúrbios neurogênicos e distúrbios microvasculares coronarianos, sendo responsáveis por alterações cardíacas associadas. Diferenças patogênicas nas cepas de T. cruzi e a suscetibilidade do hospedeiro também podem desempenhar um papel no padrão clínico e na gravidade da doença”, relatam os pesquisadores no guia.
Atendimento prioritário

Maria do Carmo

Exames clínicos, testes sorológicos, eletrocardiograma e exame de imagem como o ecocardiograma são recomendados. “Priorizar o acesso dos pacientes a um diagnóstico preciso e a cuidados, como a implantação de marca-passo, poderia prevenir muitos casos de morte súbita”, defende Maria do Carmo Pereira. Mas ela reconhece que o acesso aos exames, especialmente de imagens do coração, é um grande desafio para regiões rurais e remotas, como o Norte de Minas Gerais, considerado hiperendêmico para doença de Chagas.
Uma alternativa, segundo ela, pode ser os serviços de diagnóstico a distância, como o desenvolvido pela Rede de Teleassistência de Minas Gerais (RTMG), coordenada pelo professor Antônio Luiz Ribeiro, também cardiologista do HC e coautor do documento. Ele também integra equipe de especialistas do Centro de Pesquisa de Medicina Tropical de São Paulo-Minas Gerais (Sami-Trop), liderado pela pesquisadora da USP Ester Sabino. Nos 21 municípios da região, dois mil pacientes chagásicos são acompanhados pela equipe do Sami-Trop.
O grupo avalia o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da região, inspeciona a presença do vetor nas moradias, colhe material para sorologia dos pacientes e realiza ecocardiogramas, considerado o grande diferencial da proposta. As imagens do coração são enviadas pela internet para a Unidade de Telessaúde do HC-UFMG, onde são analisadas por especialistas. No polo regional, em Montes Claros, um especialista também acompanha os pacientes.
Referência
Embora não tenha participado diretamente da elaboração do guideline sobre a doença de Chagas, o professor Manoel Otávio da Costa Rocha, coordenador do Centro de Treinamento e Referência de Doenças Infecciosas e Parasitárias do HC, é considerado pelo grupo da UFMG como uma referência na atenção ao paciente chagásico. “Esse paciente merece todo respeito e cuidado pela fragilidade que a doença lhe impõe, um ensinamento que herdamos do professor Manoel Otávio”, diz Maria do Carmo Pereira Nunes, que foi orientada por ele tanto no mestrado quanto no doutorado.

Fonte: Boletim UFMG

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